XICA DA SILVA
exibição comentada em 28 de abril de 2012
A história da ex-escrava
Francisca da Silva representa um caso interessante do nosso passado. Primeiro,
pelo fato desta cativa do arraial do Tejuco (atual Diamantina) ter se envolvido
amorosamente com o Contratador dos Diamantes, João Fernandes de Oliveira, um
dos homens mais ricos e poderosos do Império Português do século XVIII. Apesar
deste tipo de relação entre senhor e escrava ter sido comum na sociedade
luso-brasileira, a estabilidade desta união foi duradoura e com muitos filhos. O
destaque sócio-político e econômico do contratador lhe garantiu sustentar
aquela situação que rompia os padrões da época, mas também alimentou o
escândalo e oposição por tamanha distância étnica-social.
Em segundo lugar, a história que
se passou no interior de Minas Gerais é bastante conhecida em vários pontos do
extenso território brasileiro. O modo como essa história se disseminou
exemplifica como o passado histórico circula e é utilizado por variados setores
da sociedade. Sem dúvida, o filme Xica da Silva, lançado por Cacá
Diegues em 1976, foi muito importante para a construção dessa história
pública. O filme segue o ritmo de uma comédia carnavalesca embalada pela
contagiante música-tema de Jorge Ben. E conta, ainda, com interpretações memoráveis
tanto de atores conhecidos, como Walmor Chagas e José Wilker, quanto nomes
em início de carreira, como Zezé Mota e Stephan Nercessian.
Mas antes de virar filme, a história
da sociedade diamantinense já havia sido registrada por diferentes suportes. Memórias do Distrito
Diamantino, escrito pelo jornalista e memorialista Joaquim Felício dos
Santos, no século XIX, retrata em suas páginas a ex-escrava Francisca da Silva, porém com outras cores da representação mais conhecida atualmente. A
depreciação da história de Xica reflete os valores preconceituosos
correntes naquele final de século.
Uma mudança na abordagem da
temática ocorre em 1963, quando a escola de samba carioca Acadêmicos do
Salgueiro levou para a avenida o enredo Xica da Silva: a mulata que era
escrava. O samba enredo, composto por Anescarzinho e Noel Rosa de Oliveira,
retomava a narrativa construída no século XIX, porém desta vez a negra ganhava
destaque por ter conseguido aproveitar as brechas na sociedade e ganhar prestígio
local. O desfile foi um sucesso, trazendo inovações para a produção carnavalesca e foi coroado com o título para escola.
Poucos anos depois, a literatura
reforçou a ideia de uma ex-escrava poderosa. Em 1966 foi lançado o livro Chica
que manda, de Agripa Vasconcellos, um autor que se notabilizou por romances
históricos tendo como fundo Minas Gerais; como Chico Rei e Dona
Beija. Como se percebe, muitas já eram as referências sobre Xica da
Silva, e o diretor Cacá Diegues soube muito bem aproveitar delas para
reconstruir a história. Além da literatura e do carnaval, é possível perceber
um conjunto iconográfico nos cenários e nas cenas do seu longa-metragem. A
Xica de Cacá foi tão impactante que até o nome da ex-escrava passou a ser grafado
com “X”.
E o imaginário em torno de Xica
da Silva prosseguiu com a telenovela feita pela extinta Rede Manchete, em
1996. O sucesso da produção se apropriava de outras referências, ao mesmo tempo
em que criava uma Xica extremamente sexualizada e vingativa.
Como se percebe, em um século de
registros há uma intensa circularidade do conhecimento histórico, tornando a
história desta ex-escrava conhecida em todo o país e mesmo no exterior, pois
diante desta riqueza a historiadora Júnia Furtado desenvolveu intensa pesquisa
cujos resultados foram publicados no livro Chica da Silva: o outro lado do
mito, traduzido para o inglês.
Portanto, são múltiplas as
possibilidades analíticas dessa história. A exibição comentada do filme Xica
da Silva oferecerá um pouco dessa discussão e de outros elementos
dessa história pública.
Abaixo, seguem algumas obras sobre o
tema:
Chica que manda, lançado
por Agripa Vasconcellos em 1966, pela editora Itatiaia
Em Introdução à História Pública,
lançado em 2011 pela Letra e Voz, reflexões sobre os espaços de produção e
divulgação da História são temas de um conjunto de autores. Destaco o capítulo Cinema,
Educação e História Pública: dimensões do filme Xica da Silva, de minha autoria
Chica da Silva: o outro lado
do mito, ótimo trabalho histórico no qual Júnia Furtado parte da
biografia da ex-escrava para melhor compreender aquela sociedade setecentista, lançado pela
Cia das Letras em 2003.
Publicado por Rodrigo de Almeida Ferreira